sileno, a sábia sombra ébria de dionisos, amparava a sua idade e consciência no odre que sempre transportava consigo.
a festa fazia-a consigo vagando com o seu passado transmutado em bebedeiras de futuro no passado.
entendeu a sua sabedoria repousar a consciência libertando-a das grilhetas do presente embebendo-a no néctar divino.
entendeu ser imutável o passado e vã a tentativa de o reviver.
saboreou-a na dormência dos tropegos sentidos da idade e da inconsciência embebida e tragou-a como se de um presente se tratasse.
sileno ébrio, sileno idoso optou pela inconsciência e pela valoração do sentir do momento, escudando-se e escudando o seu eterno companheiro.
enquanto não adormeço especulo, evitando preocupações que perturbem um sono desejado.
ensaio o pensamento sobre percursos históricos e míticos tentando reconstituí-los.
subtitamente as ideias surgem para que as deposite no bloco de notas que acompanha o leito e que a preguiça e langor impedem de o fazer.
embora as ideias se esvaiam por entre as imagens fantasticamente realistas mas esteticamente reorganizadas pela inconsciência durante as fases oníricas, os resíduos re(a)cordam com a consciência que se desperta.
última ceia: doze apóstolos à mesa e um décimo terceiro (sacrificium - sacro oficiu- oferece-se na ceia final- acto único).
os cavaleiros da távola redonda no seu ritual iniciático, na sua demanda do santo cálix, reunidos pelo espírito do graal.
os rosacrucianos ritualmente unidos e purificando o corpo pela fé na demanda.
intermédio tempo. intermezzo.
primum: naturis causae.
a natureza segue, crê-se, por ciclos; são doze os meses do ano; inicia-me com o nascimento e termina com a morte; reinicia-se com o (renascimento) ressurgimento da vida primaveril (primeva, prima veritas, prima vitae) que brota e fecha o ciclo com a morte (retorno à terra mãe que doou à natureza a vida e que a recolhe para germinar novo ciclo). saturnalis.
o décimo segundo apóstolo anuncia a morte. trai a vida. fecha o ciclo que exige o sacrifício para assegurar a continuidade. troca por troca.
sacro symboula.
esgueiro-me por entre as árvores do pomar até ao telhado e sento-me sobre a casa de banho por ser mais acessível e estável, favorecendo a camuflagem pela proximidade com a chaminé.
ainda que húmida, a aragem nocturna reabre os olhos para contemplar o largo horizonte sob as estrelas que, indiferentes, continuam a projectar seu brilho.
às escondidas, acendo o cigarro e apago-o de seguida por deixar de me apetecer.
espreguiço o corpo com a alegre sensação de liberdade e de comunhão com a natureza.
continuo, como na infância, a fugir para a noite e com ela ficar divertidamente enquanto o mundo deste lado dorme.
sorrio à socapa por jamais terem sido descobertas as escapadelas nocturnas para o telhado da casa. os comentários matinais culpam sempre os gatos e os ratos que pelas telhas se passeiam perseguindo-se.
aprecio os esconderijos e os silêncios. está-se em paz e fora do alcance dos vigilantes olhos que nos perseguem sem tréguas.
a solidão deve ser respeitada por ser espaço de reflexão ou de espansão; de concentração ou de dispersão. o recolhimento denuncia privacidade e exige respeito.
este pathos nasce da tua contradictio quando furiosamente me devoras despojando-me das minhas vestes que rasgas violentamente... ou quando me cobres o peito de queijo e mel e lenta e disciplinadamente o vais saboreando impedindo-me qualquer movimento... ou quando te lembras de olear os corpos e impedes qualquer permanência ou estabilidade nas superfícies que fazem qualquer movimento escorregar para o vazio e te ris loucamente da impotência gerada.
diurnamente reina a disciplina de uma postura formal com os pratos e talheres meticulosamente ordenados sobre a mesa e travessas e copos dispostos sem qualquer desvio e os corpos permanecem sentados e erectos até que o repasto termine.
com o nosso sobrinho brincas com uma delicadeza como se de um divino ser se tratasse, ou lhes dás banho numa água cuidadosamente aquecida e um sabonete criteriosamente seleccionado para o enxugares com a tolha mais macia e imaculadamente branca, envolvendo-o protectoramente entre os braços para sossegadamente o adormeceres.
à noite tudo se inverte: as regras são abolidas transfigurando-se a delicadeza numa paixão arrebatadora como se as luzes que entretando se baixam fossem o sinal combinado para a transgressão. não há lugares sagrados: todo o local é eleito para a orgia, excepto aquele que está convencionado.
são as noites à lareira que convidam às loucuras quando lhe abres a porta e contemplas o seu crepitar.
renasce o dia e retorna a disciplina: precisamos de tempo, bebé, dizes. quero-te só para mim quinze dias sem mais ninguém ou algo entre nós, bebé.
as palavras diurnas são incomparavelmente mais ternas que as nocturnas apaixonadas e agressivas.
prefiro esse lado nocturno. a indisciplina.
contradictorium est
saio de corpo desnudo escutando os insectos nocturnos na sua azáfama ritual do silêncio e do escuro amantes.
entre o campo e o mar está a serra ainda semiliberta das grilhetas do progresso. só a estrada a trai.
cheira, ao longe, a queimada do fogo plantado e em crescendo nos últimos dias.
o horizonte, antes límpido, é ora quase roxo de nuvens fumantes.
as ovelhas chocalham os guizos.
o calor agradece a nudez.
gratifica ser-se nado e desnudo num espaço percorrido apenas e só de vida sem olhares promíscuos que o denigram ou deglutam.
retorno à natureza e felicitamo-nos por isso. só os pés não aprenderam a conviver com esta nudez reclamando a cada passo desta magistral aventura.
esculpindo pedaços de persona se inventa o espelho virtual do projecto que se pretende ver.
de fragmentos se constrói um ego de que resulta a persona resgatada entre palavras e olhares diversamente captados.
afasta-se e aproxima-se o corpo ajustando a imagem que se quer reflectida e observa-se o pretendido.
um eu vaidoso crê-se uno na fragmentação de proveniência diversa e dúbia.
é condição de sobrevivência crer-se na unidade e na identidade, na persistência e na consistência, ainda que qualquer desvio possa promover o desmoronamento nos seus originais.
quem é mais belo?
a maçã? não.
é o verbo.
não!... é o alterego.
juntando pedaços de letras, ideias, memórias e palavras formamos os espelho que nos reflecte limado pelas afinidades e preferências por reflexos adequados a um perfil aprendido.
escolhe as palavras espelháveis de uma identidade publicamente assumida privadamente repudiada e adulterada.
masturbamo-nos em exercícios narcísicos onde ecos sempre nos devolverão o texto ressonante de silêncio.
malvadamente indagamos o espelho sobre quem é mais belo que o ego e ele, traiçoeira e cautelosamente para que o mistério e o elo não o quebre, responderá que é o ego, que é o ego ainda que os olhos que os olhem o não denunciem por se terem viciado em perfis diferenciados.
perante a beleza jamais a reconheceremos, cremos, por ofusque da sua intensidade, iludindo-nos sobre a pretensa verdade egótica.
todo o nosso pequeno grande mundo sublima o egotismo. não há sentido sem narcisismo.
o castigo narcísico assumido foi a morte. e eco persiste na sombra dos rochedos sibilante de dor pela perda e pelo remorso de ter denunciado pela palavra a presença do amável.
ambos perderam: ela por não espelhar o seu ego; ele por inadvertida e inconsequentemente o ter ostentado.
quem é mais belo que eu?
a maçã? não, o verbo.
correntes invisíveis e insinuosas estacaram.
segue-se a marcha quedante da perdição do tempo.
da janela contempla-se a noite de insónia anonimamente partilhada algures.
indaga uma insónia à outra se já se cruzaram algures.
o assentimento confirma que todas as insónias partilham segredos de consciências preocupadas e que se tornam preocupantes mas são silenciosamente ignoradas.
a felicidade das insónias materializa-se nas experiências de um combate terrorista a um sono intromissor numa consciência borbulhante de perguntas sem respostas.
as insónias dialogam em silêncio para as noites não escutarem os segredos das partilhas.
bebem divertidas embriagantes pirolitos de gotas salgadas que pelas faces rolam, divertem-se com unhas e peles roídas pela impaciência, de corpos que rolam num desassossego de imposição, de automutilações que procuram a inconsciência, espreitam as pálpebras quando elas se semicerram em vãs tentativas de fechadas se manterem.
são brincadeiras inconsequentes de quem não sabe dormir ..
são inofensivas as insónias... para as noites que se sentem tão sós.
e são noctívagas e noctivagantes as insónias.
e gostam da lua e arrastam os corpos para a luz indesejada.
entro na noite sob o disfarce de lince esventrando a primeira luz que me denuncie.
saltos no escuro não ecoam silenciando uma presença colada à cor da noite.
sigo o rasto do sangue deixado pela vida a cada passo que a morte dá.
procuro a ave nocturna, aquela que me revelará os segredos mistéricos da orgia da vida oculta.
sábia ave não abandona o poiso dos ramos cobertos de ramagens escurecidas de quem muito viu e pouco contou.
conluio formado para o início da arte ditirâmbica, do grito selvagem atrofiado num peito ocultado pela opacidade do tempo inexistente antes da lua.
o que a lua ilumina não revela presenças mas anuncia sombras moventes e mutantes e transmutantes para o outro lado.
ninguém olha a lua, ninguém lhe canta quando lince e avis rarae congeminam caminhos iniciáticos.
selam-se os acordos com olhares cruzados.
seguem caminhos cruzados imaginariamente. os espaços diferenciados e personalizados não se permutam.
cada lugar ali é o seu e é de nenhures.
em cada inverno se celebra a primavera. a semente que germina mas não brota, recolhida no seio da terra.
pressentimentos guiam intuições.
a lógica diurna segue emoções na pele marcadas.
a pele permanece colada aos corpos de pulsões instaladas.
sabe-se da consciência semiconsciente.
renega-se a consciência imprecisa e arrogante, assume-se um rosto desmascarado.
é a hora de atacar a vida, de fazer jorrar o seu sangue, de a fecundar de energia, de a soltar de corpos de(s)compostos.